Tópico 55- Deslocalização π: polienos cíclicos conjugados

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Aromaticidade

Tal como nos seus análogos lineares (link polienos), os polienos cíclicos conjugados possuem carbonos adjacentes com hibridação sp2 e um sistema π deslocalizado. Entre estes compostos  destacam-se
os hidrocarbonetos aromáticos (também chamados arenos) como o benzeno. Embora a aromaticidade seja um dos mais discutidos conceitos da química orgânica, não existindo um critério geral para identificar o carácter aromático de um composto, o termo é muito utilizado e existe um grande número de compostos classificados como aromáticos e heteroaromáticos. A reactividade química foi uma das primeiras características a ser utilizada para distinguir compostos aromáticos de polienos cíclicos «normais». Um alceno, R1C=CR2 (link alcenos), reage, por exemplo, com bromo, Br2,  por adição à ligação dupla dando origem ao alcano substituído R1(Br)CC(Br)R2 . Nos compostos primeiro designados como aromáticos não há adição às ligações duplas mas estes reagem com electrófilos por substituição em reacções designadas genericamente como substituição electrofílica aromática, um dos processos fundamentais da química orgânica, em que há substituição de um hidrogénio por um grupo electrófilo.

Outra forma de  identificar um composto aromático consiste na aplicação da regra de Hückel. Esta regra sustenta que são aromáticos compostos planares monocíclicos (anulenos) com sistemas com (4n+2) electrões π. Sistemas contendo 4n electrões π prevê-se que sejam não-aromáticos.  Haddon redefiniu esta regra considerando que em polienos com (4n+2) átomos de carbono conjugados, a energia dos electrões π do anuleno C4n+2 H4n+2 será menor (ou seja, o composto cíclico correspondente será mais estável ) que a dos polienos lineares C4n+2 H4n+4. Em anulenos C4n H4n, a energia dos eletrões π é maior que a dos correspondentes polienos lineares C4n H4n+2 (ou seja, são menos estáveis) e compostos como estes são designados anti-aromáticos.

A explicação deste comportamento anti-aromático decorre naturalmente da  descrição da ligação química no anuleno de mais baixo peso molecular, o ciclobutadieno. ( Fig. 1)



Fig. 1: Ligação química no ciclobutadieno.

No ciclobutadieno as orbitais π2 e π3 são degeneradas de forma que este composto é paramagnético. De acordo com o teorema de Jahn-Teller, com excepção de moléculas lineares (como no caso do oxigénio, O2 (link TOM), moléculas com estados fundamentais degenerados serão instáveis. O teorema prediz ainda que a geometria da molécula será distorcida de tal modo a remover a degenerescência. De facto, em relação ao butadieno a energia dos electrões π é maior no anuleno correspondente (Fig.2). Por uma questão de simetria, nos anulenos planares apenas a orbital totalmente ligante e a orbital totalmente anti-ligante não são degeneradas de forma que quando existem 4n electrões π as últimas orbitais ocupadas são duas orbitais degeneradas e apenas quando existem (4n+2) átomos de carbono na cadeia a molécula será diamagnética.  Aliás, a comparação da energia dos electrões π num polieno linear e no equivalente cíclico pode ser outra forma de definir aromaticidade: um composto é aromático se a energia dos eletrões π do anel for menor que a energia no composto de cadeia aberta e será anti-aromático se for maior (se for igual, o anel resultante é não aromático).
Orbitais pi butadieno versus ciclobutadieno
Fig. 2:  Comparação da energia das orbitais moleculares π no ciclobutadieno e butadieno

Assim, para além do ciclobutadieno, os anulenos em C8, C12 e C16 deverão ser anti-aromáticos e, para além do benzeno,  os anulenos com dez, catorze e dezoito átomos de carbono deveriam ser aromáticos. Na realidade, o ciclooctatetraeno não é planar sendo melhor descrito como uma molécula não aromática. Por seu lado, os 10, 12 e 14-anulenos são pouco estáveis por razões estereoquímicas. Em anulenos de maiores dimensões, as repulsões de van der Waals com os hidrogénios internos ao anel (identificados a vermelho nas estruturas da Tabela 1) são minimizadas e as moléculas são estáveis. O 16-anuleno, tal como o ciclooctatetraeno, não é planar e apresenta ligações de dimensões alternadas pelo que é igualmente descrito como não aromático. O 18-anuleno é quase planar e apresenta uma energia de ressonância de  418 kJ/mol, o que indica um certo carácter aromático, embora esteja longe da estabilidade adicional do benzeno - e reaja como um polieno, nomeadamente adiciona Br2. As geometrias dos  anulenos estáveis são indicadas na tabela 1.

Tabela 1- Geometria de anulenos estáveis

Anuleno Estrutura
Ciclooctatetraeno



16-anuleno


18-anuleno




Heterociclos

A regra de Hückel pode ser estendida a qualquer polieno cíclico conjugado (os polienos lineares são não aromáticos), desde que este seja planar (para que haja uma boa sobreposição entre as orbitais  p). Para além dos anulenos, são igualmente polienos cíclicos conjugados os compostos heterocíclicos, isto é, em que pelo menos um dos carbonos de um dos anéis foi substituído por um heteroátomo (que é normalmente azoto, oxigénio, enxofre mas pode ser outro átomo como fósforo ou arsénio) e os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HAPs). Os HAPs são prevalecentes através do Universo, isto é, como indicou o telescópio espacial Spitzer da NASA, são muito abundantes no espaço interestelar. De igual forma, são muito abundantes os heterociclos aromáticos policíclicos de azoto (HAPNs), formados em grande escala em torno de estrelas moribundas. A clorofila, o composto que permite a fotossíntese em plantas, é um bom exemplo desta última classe de compostos.

Voltando à Terra, cerca de metade de todos os produtos naturais são heterociclos, muitos dos quais desempenham funções muito importantes nos organismos, humano inclusive. Para além disso, muitos destes compostos são farmacologicamente activos. Os alcalóides, por exemplo, são uma família de heterociclos de azoto naturais. A importância destes heterociclos conjugados é apenas exemplificada pelas bases do ADN, a adenina e a guanina (bases derivadas da purina) e a citosina e timina (bases derivadas da pirimidina, tal como o uracilo presente no ARN) (Tabela 2).

Tabela 2 - Estrutura de alguns heterociclos aromáticos

Estrutura
Estrutura
Furano
Triptofano
Tiofeno
Indol
Pirrol
Serotonina
Pirimidina
Purina
Piridina
Cafeína

Imidazol
Quinino

Ácido ascórbico
(Vitamina C)
Indigo

Quer os heterociclos quer derivados de polienos cíclicos são compostos ubíquos na Natureza, tanto que um deles foi chamado ubiquinona (igualmente designado coenzima Q10 nos humanos), uma benzoquinona presente em praticamente todas as células (naquelas que possuem com mitocôndrias onde participa nos processos de produção de ATP). São igualmente muito abundantes os aldeídos (link aldeídos) derivados de ácidos benzóicos (link ácidos carboxílicos), que são constituintes dos óleos essenciais de muitas plantas, e os compostos fenólicos que englobam desde moléculas pequenas até compostos poliméricos com graus variáveis  de polimerização, como sejam taninos, ligninas e polímeros de  leucoantocianidinas e catequinas ( por exemplo, os teorubígenos e teoflavinas do chá preto).  Os polifenóis constituem um grupo muito diversificado de compostos químicos encontrados no mundo vegetal, que têm merecido a atenção do público em geral nas últimas décadas devido à descoberta das suas propriedades anti-oxidantes - são sequestradores (scavengers) de radicais livres, o que inibe inúmeras doenças mediadas por estas espécias. Os polifenóis incluem cumarinas, flavonóides, flavonas, flavonóis (3-hidroxiflavonas ou catequinas), chalconas, isoflavonas e ácidos fenólicos e estão presentes nos vegetais na forma livre ou ligados a açúcares e proteínas.

Como nota de curiosidade, Faraday, que descobriu o benzeno, chamou-lhe o que se pode traduzir como «hidrogénio carboretado». Uns anos mais tarde, o benzeno foi isolado da resina balsâmica de algumas árvores, conhecida por «benzoina». Mitscherlich, que fez a descoberta, decidiu chamar benzina ao composto, mas este nome, tal como o termo alternativo benzol, não teve aceitação unânime por parecer incluir o composto na família dos alcalóides ou dos álcoois. O nome hoje em dia consagrado deve-se a Viktor Meyer embora Auguste Laurent, um dos pioneiros da teoria atómica moderna, tenha sugerido mudar o nome para «phene» (feno), do grego phainen que significa brilho ou brilhar.  Embora o nome não tenha «pegado» para designar o composto propriamente dito, persiste no nome de alguns derivados do benzeno, como os compostos fenólicos, e em compostos  como o fenantreno e seus derivados, para além da designação fenilo aplicada ao radical -C6H5.

Hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HAPs)

Os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos (HAPs) constituem uma família de compostos caracterizada por possuírem 2 ou mais anéis aromáticos condensados.  A reactividade dos HAPs é semelhante à do parente benzeno mas são normalmente mais reactivos que o benzeno (e com menor energia de ressonância por átomo de carbono).Rodando as estruturas apresentadas na Tabela 3 é possível confirmar a geometria plana destas moléculas, que indica a existência de um extenso sistema  π deslocalizado, com excepção dos helicenos que assumem uma forma helicoidal devido a impedimento estereoquímico.

Tabela 3 . Estrutura de hidrocarbonetos aromáticos policíclicos

Naftaleno
Fluoreno
Antraceno
Fenantreno
Criseno
Pireno
Pentaceno
Perileno
Trinaftileno
Coroneno
Hexaheliceno
Decaheliceno

À medida que estes sistemas aromáticos se tornam maiores, a razão H/C diminui. Para um hexaciclo como o coroneno, C24H12, esta razão diminui para metade do valor unitário encontrado no benzeno.   Aumentando o número de anéis condensados esta razão tende para zero e no limite o composto resultante seria uma forma de carbono. Esse limite existe e corresponde à grafite (link grafite) e a novas formas de carbono como sejam os fullerenos, os grafenos, ou nanotubos (link grafenos)